segunda-feira, 31 de março de 2014

Selfies

As selfies estão na moda. O sentido das coisas anda a correr de dentro para fora. Nós e o mundo.
Tu e eu.
Eu e tu.
Qual a mais usada?
Eu e tu.
Eu primeiro.
Mostramo-nos ao mundo. Ó pra mim a viver. A respirar. Olhem para mim. A apanhar o avião. Em casa, com o cão. O gato. Na praia. A apanhar sol, de havaianas nos pés. Sem havaianas nos pés. Com a mãe. Com os filhos. Esta é a minha família. Eu e a minha ascendência e descendência. O que está em redor de mim, O antes e o depois de mim. O que meto dentro: ó pra mim, a almoçar. Isto é o que irei comer e beber já a seguir. Ao jantar. Na festa. Com os amigos. Os copos. No bar. No concerto. Na rua. Junto ao Arco do Triunfo. O Coliseu ao fundo. A Muralha da China. O castelo. O museu. A loja. A ponte. O rio. Ó pra mim no mundo.
Às vezes penso que sentimos o mundo tão pequeno, tão apertado, que temos de erguer o braço, a pedir socorro. Estou a afundar-me, salvem-me. Mas isto são pensamentos feitos de chuva. O dia de hoje deixou-me assim, embalsamada em cinzas.                            

quarta-feira, 26 de março de 2014

Catarina Sobral

Em celebração do Dia do Livro, aqui têm uma boa notícia: Catarina Sobral, ilustradora portuguesa, acaba de ganhar o Prémio Internacional de Ilustração, da Feira do Livro Infantil de Bolonha 2014.
Para mais informação, espreitem aqui 

sábado, 22 de março de 2014

Águas

Apesar de, no Brasil, Março representar o final do Verão (enquanto que, para nós, representa o princípio da Primavera), aqui ficam as «Águas de Março» de António Carlos Jobim, em honra da efeméride de hoje: Dia Mundial da Água. Abaixo, a histórica gravação de Elis e Jobim, em estúdio, feita em 1974 (e filmada já em playback, mas a malta perdoa):  tem a idade da nossa Democracia. E a propósito, reparem no pormenor: a Elis está de cigarro na mão! :-) outros tempos...
É pau, é pedra, é o fim do caminho
É um resto de toco, é um pouco sozinho
É um caco de vidro, é a vida, é o sol
É a noite, é a morte, é o laço, é o anzol
É peroba do campo, é o nó da madeira
Caingá, candeia, é o Matita Pereira
É madeira de vento, tombo da ribanceira
É o mistério profundo, é o queira ou não queira
É o vento ventando, é o fim da ladeira
É a viga, é o vão, festa da cumueira
É a chuva chovendo, é conversa ribeira
Das águas de março, é o fim da canseira
É o pé, é o chão, é a marcha estradeira
Passarinho na mão, pedra de atiradeira
É uma ave no céu, é uma ave no chão
É um regato, é uma fonte, é um pedaço de pão
É o fundo do poço, é o fim do caminho
No rosto o desgosto, é um pouco sozinho
É um estrepe, é um prego, é uma ponta, é um ponto
É um pingo pingando, é uma conta, é um conto
É um peixe, é um gesto, é uma prata brilhando
É a luz da manhã, é o tijolo chegando
É a lenha, é o dia, é o fim da picada
É a garrafa de cana, o estilhaço na estrada
É o projeto da casa, é o corpo na cama
É o carro enguiçado, é a lama, é a lama
É um passo, é uma ponte, é um sapo, é uma rã
É um resto de mato, na luz da manhã
São as águas de março fechando o verão
É a promessa de vida no teu coração
É uma cobra, é um pau, é João, é José
É um espinho na mão, é um corte no pé
São as águas de março fechando o verão,
É a promessa de vida no teu coração
É pau, é pedra, é o fim do caminho
É um resto de toco, é um pouco sozinho
É um passo, é uma ponte, é um sapo, é uma rã
É um belo horizonte, é uma febre terçã
São as águas de março fechando o verão
É a promessa de vida no teu coração
Pau, pedra, fim, caminho
Resto, toco, pouco, sozinho
Caco, vidro, vida, sol, noite, morte, laço, anzol
São as águas de março fechando o verão
É a promessa de vida no teu coração.

sexta-feira, 21 de março de 2014

Maria do Rosário Pedreira

O tom e a voz
«Diz-se muitas vezes que o verdadeiro escritor tem de ter uma voz, ou seja, tem de ser reconhecível em tudo o que escreve através de um estilo que lhe pertence e não é de mais ninguém (mesmo que nele se notem influências de autores queridos e amados, o que nada tem que ver com copiar a forma de esses escreveram). Quando estão a começar livros novos, também os escritores dizem frequentemente que têm tudo na cabeça mas ainda não encontraram o tom. Ora, é no mínimo engraçado que se usem dois termos – voz e tom – quando se está a falar de escrita, pois seriam, digo eu, mais imediatamente associados à oralidade. Mas também eu tenho tendência para pensar, quando ouço um dos meus poemas dito por outra pessoa, que aquela não é a música com que o escrevi. Por falar em música, leio numa entrevista a Annie Clark (artista pop) uma belíssima citação da biografia de Miles Davis, na qual se diz que a coisa mais difícil para um músico é «soar a si mesmo», expressão que, no fundo, equivale a «ter uma voz» em termos literários (isto anda tudo ligado). Ter várias vozes, como Pessoa & heterónimos, não deve ser, mesmo assim, confundido com não ter nenhuma, que é o que acontece quando deixamos um recado à senhora que nos dá uma ajuda na limpeza da casa e que, seja ou não um escritor a redigi-lo, deve ser sempre mais ou menos a mesma coisa. Já me aconteceu, porém, ser jurada num prémio de poesia e ter seleccionado dois livros completamente distintos que eram, afinal, da mesma pessoa. Não sei, mesmo assim, qual deles, para o seu autor, soaria melhor a si mesmo.»
(MARIA DO ROSÁRIO PEDREIRA, no seu blogue Horas Extraordinárias, 18 Março 2014)

quinta-feira, 20 de março de 2014

Porque posso

18.25
Enfiada na cama neste fim de tarde tristonho. Só porque posso. A primavera chegou há pouco, a brindar-me com uma dor de cabeça fiel, que não me larga desde manhã. Não se deixou intimidar - muito menos expulsar - com o aspegic 1000 nem com o nimesulide.
Trabalhar no computador ou navegar na internet? Missão Impossível.
Por isso aqui estou.
Deitei-me com o novo JL que me chegou ontem. Um dos prazeres singelos que tenho na vida, rasgar o plástico do Jornal de Letras que o carteiro me traz, 4ª feira sim 4ª feira não. E já que a dor de cabeça se acentua se eu insistir em escrever ao computador (isto que lêem é em diferido, naturalmente), peguei na leal folha de papel e na velha caneta BIC Cristal ("de escrita normal", só os mais crescidinhos irão entender isto) e pronto, problema resolvido. Não é maravilhoso? A mim ocorrreu-me esta solução simples, arcaica; não estou certa de que irá ocorrer às gerações futuras. Aliás, imagino um futuro onde os copistas se tornam novamente numa preciosidade, a escrita arcaica como "profissão de futuro": as populações nascendo sem o gene da caligrafia, incapazes de escrever senão em teclados que imprimam os símbolos por elas; a mão falhando o amparo da caneta que se queda, desajeitada, desamparada, sobre a folha. "Escritores de letras", anciãos-artistas, artesãos das letras, celebrando, com arte, os velhos rabiscos de antigamente. Cartas manuscritas e listas de supermercado guardadas em museus, como relíquias, lendas e fábulas começando assim: "No tempo em que os homens escreviam...".
E acho que nisto a dor de cabeça se foi.
Bem dizem que a escrita pode ser uma terapia. Mas também pode ter sido pelo alívio que me trouxe o telefonema que acabei de receber de uma escritora amiga. Vá-se lá desvendar os caprichos do nosso corpo.

quarta-feira, 19 de março de 2014

Os pais também choram

"— Trouxeste o que eu te pedi?
— Sim, toma.
Lúcia entregou à irmã, grávida do segundo filho, o grosso volume de histórias encadernadas em pele, que a avó dera a Francisca no Natal, havia vinte anos. Para espanto de Lúcia, que julgava dever-se o pedido de devolução ao facto de a irmã ter uma filha na escola e ir a caminho do segundo filho, Francisca abriu o livro quase a meio, arrancou a sua história preferida: «Um Olhinho, Dois Olhinhos, Três Olhinhos», e pousou as folhas sobre o peito da avó morta, antes de fecharem o caixão. Lúcia olhou para o pai: nunca o tinha visto chorar, a não ser quando morrera o cão. A jovem mulher lembrava-se do suor escorrendo pela testa do pai, enquanto este abria a cova sob os pinheiros bravos, as costas da mão a passar nos olhos (suor ou lágrimas?), o saco preto do lixo, a mancha de sangue na estrada.
— Teve uma vida feliz, não foi, pai?
E ela, que pensava com essas palavras dar conforto ao seu herói, que parecia, estranhamente, conter o choro, fez com que o pai expelisse, de uma vez, todo o ar dos pulmões, para se entregar a um choro desalmado, com direito a gemidos quase infantis, a cabeça baixa, o corpo curvado, ambas as mãos sobre a enxada apoiada na terra. Lúcia espantou-se. Afinal, os pais também choravam, não eram só as mães."
(excerto de um futuro livro em que estou a trabalhar) 

sexta-feira, 14 de março de 2014

Benédicte Houart

são as mulheres que
fazem chorar as cebolas
como se descascassem a própria vida
e, arredondando-se então, descobrissem
um corpo, o seu
uma vida, a sua
e, no entanto, nada que de verdade
pudessem seu chamar
ou talvez sim, mas só
aquela gota de água salpicando
um canto do avental onde
desponta uma flor de pano colorida que
ainda ontem ali não ardia


(NOTA - escrito em português, no original: a autora nascida na Bélgica - pai belga, mãe portuguesa -, mudou-se para Portugal na infância, em 1975 e por aqui ficou desde então).

quinta-feira, 13 de março de 2014

Carta a um blogue

Querido blogue,

Desculpa ter-me esquecido de ti. Do teu aniversário. Deixei-te aqui, desamparado durante quase uma semana, precisamente quando completas cinco anos de idade. Se entretanto não estiveres ofendido comigo, talvez vás gostar de saber que te fui fiel. Não senti qualquer impulso de trair-te. És o único blogue da minha vida; onde, ultimamente, tenho escrito. O facebook não conta, tu sabes que aquilo é uma relação passageira, nada de sério. É uma febre, uma vertigem, às vezes chega a ser um vírus. Tu não. Tu és o quarto onde venho dormir, sonhar, confessar, em almofadas de fundo negro, o melhor e o pior que tenho dentro. 
E porque te devo sinceridade, porque devo ser leal contigo, tenho de contar-te:
Comecei uma nova relação. Acho que será duradoura, que irá roubar-me muitas horas. Perdoa-me, mas estas coisas são mesmo assim, não pude controlar-me, aconteceu. Vou dizer-te, sem mais rodeios.
Adivinho o início de um romance. Não me interpretes mal, gosto dos momentos que passo contigo, mas...são efémeros, o que se há-de fazer...? É a tua natureza. Convenhamos que não temos grande futuro, consumimo-nos no tempo de um fósforo, um pequeno post por dia enquanto que, num romance, posso estender lençóis intermináveis, amachucando, nas horas nocturnas, o corpo de cada palavra. Fantasiar em ter um dia um filho de folhas nos braços.
Não me abandones, não faças as malas, não partas rumo ao espaço sideral. Tem mais um pouco de paciência comigo, e eu dou-te a minha palavra em como te deixarei espreitar, de vez em quando, para te juntares a nós, ousadamente. Não existe vergonha. Afinal, somos apenas um. 

Antecipadamente grata,

Aquela que te escreve.

sexta-feira, 7 de março de 2014

Rainer Maria Rilke

“Be patient toward all that is unsolved in your heart and try to love the questions themselves, like locked rooms and like books that are now written in a very foreign tongue. Do not now seek the answers, which cannot be given you because you would not be able to live them. And the point is, to live everything. Live the questions now. Perhaps you will then gradually, without noticing it, live along some distant day into the answer.”
(Rainer Maria Rilke)

quarta-feira, 5 de março de 2014