sexta-feira, 30 de outubro de 2009

Desnorteada

Perdi o Norte. Eu sei, eu sei, como é que uma bússola vai perder o Norte, olha o disparate. Mas a verdade é que perdi, não me perguntem como. Está bem, eu conto.
A sério que comecei por ser feliz. A minha vida corria dentro da normalidade, algo rotineira, é certo, mas ia cumprindo o meu dever com um grau respeitável de satisfação. Uma bússola não tem sonhos, por isso estava bem assim. Pousavam-me na mão quando se desorientavam, à espera que eu fizesse o que melhor faço – mostrar onde é o Norte. Até aqui, tudo bem. Só que de há uns meses para cá, os outros pontos cardeais manifestaram a sua inquietação e, quando eu menos esperava, decidiram reorganizar-se. De início, pensei que fosse uma crise existencial passageira, uma pequena fuga ao ramerrão diário. Uma ambição inédita, sim, mas quem era eu para falar, se era eu quem mandava? Falar é fácil, pois. Por isso fiquei calada. Mas o tempo passou e tive de admitir que o caso era mais grave, quando o Sul me usurpou o lugar. Assim que tal aconteceu, os outros, Este e Oeste, deliraram com a promessa de divertimento, e incitaram o meu pólo oposto à total desordem cardeal, argumentando que eu já tivera a minha época áurea e exigindo a igualdade de direitos.
No dia seguinte, sentindo-se despeitado, talvez, o Norte havia desaparecido. Reuni-me com a agulha, com urgência, e ao fim de várias horas de controvérsia entre os restantes três pontos cardeais, alteraram-se estatutos e o Sul ocupou a posição do ausente, assumindo a sua forma.
Mas nem sempre se muda para melhor, não é?
Como o meu dono é distraído como um relógio sem ponteiros, ainda hoje anda perdido, a fiar-se em mim, desnorteado e confiante, coitado. Um dia destes, quando arranjar coragem, conto-lhe.

quinta-feira, 29 de outubro de 2009

Parabéns, Axtérix!


O Axtérix faz hoje 50 anos.
Meio século de boas histórias, cheias de humor e de expressões e personagens que ficaram a fazer parte do nosso imaginário. Desejo-lhes outros 50, cheios de saúde e sucesso e, sobretudo, que ponham à venda TODOS OS VOLUMES MAIS ANTIGOS, para que os nossos filhos e netos possam deliciar-se com eles, como nós nos deliciámos. É urgente preservar e divulgar as coisas boas da vida.

quarta-feira, 28 de outubro de 2009

O "pintor da luz"

Joaquín Sorolla y Bastida (27 de Fevereiro de 1863, Valência - 10 de Agosto de 1923, Cercedilla), é mais um artista maravilhoso que descobri há dias e de cuja existência nem desconfiava.
Atenção a este pormenor: tendo em conta a época em que viveu, Sorolla só poderia ter sido um pioneiro da fotografia a P/B, como ponto de partida, ou ter uma memória visual inacreditável; senão, vejam a composição dos seus quadros, que falam por si. Obrigada, Filipa.









terça-feira, 27 de outubro de 2009

A cor do horto gráfico


Levezinho e obscurantista, para condizer com estes dias de nevoeiro...
(FOTO: Hejha, Alemanha)

De: autor brasileiro  anónimo, selecção e adaptação minhas

Testículo: Texto pequeno
Abismado: Sujeito que caiu de um abismo
Pressupor: Colocar preço em alguma coisa
Biscoito: Fazer sexo duas vezes
Coitado: Pessoa vítima de coito
Padrão: Padre muito alto
Democracia: Sistema de governo do inferno
Barracão: Proíbe a entrada de caninos
Homossexual: Sabão em pó para lavar as partes íntimas
Ministério: Aparelho de som de dimensões muito reduzidas
Detergente: Acto de prender seres humanos
Eficiência: Estudo das propriedades da letra F
Conversão: Conversa prolongada
Halogéneo: Forma de cumprimentar pessoas muito inteligentes
Expedidor: Mendigo que mudou de classe social; alguém que mandou a dor para outro lugar
Luz solar: Sapato que emite luz por baixo
Cleptomaníaco: Mania por Eric Clapton
Tripulante: Especialista em salto triplo
Contribuir: Ir para algum lugar com vários índios
Aspirado: Carta de baralho completamente maluca
Assaltante: Um 'A' que salta
Determine: Prender a namorada do Mickey Mouse
Ortográfico: Horta feita com letras
Destilado: do lado contrário a esse
Pornográfico: O mesmo que colocar no desenho
Ratificar: Tornar-se um rato


segunda-feira, 26 de outubro de 2009

O som e as mãos

As palavras ficaram fechadas com um cadeado feito de música. Entregues todos os sons, restou uma pausa de semibreve de três longos dias, que me arrancaram à escrita. Fui o outro lado de mim, a voz que me sai da boca e não dos dedos, que picam o teclado deste computador. Tenho as mãos ainda húmidas de melodias. É preciso estender a voz ao sol, estancar o riacho de mínimas e colcheias que ainda circula dentro de mim, até que das mãos secas escorram dunas de ideias, a arear a folha branca que me espera.

quinta-feira, 22 de outubro de 2009

Um gota de sangue apenas

Sinto-me exangue, como se houvesse acabado de sofrer o ataque de um vampiro. Uma gota, apenas uma gota sobrou, para escrever esta fraca imagem. Dormir. É urgente dormir.

quarta-feira, 21 de outubro de 2009

Entre os actos

O acto de escrever não é igual para todos. Quando não escrevo, é como se um músculo atrofiasse, mirrando até se tornar invisível. Então a escrita desaparece, para um qualquer covil onde guardo as coisas esquecidas. Porém, a passagem do tempo dispersa em mim uma irritação minúscula, que me vai corroendo os ânimos: os gestos tornam-se mais tensos, a voz mais impaciente, o espírito inunda-se de dúvida, como se fosse impossível voltar a escrever, um equívoco ter escrito alguma coisa algum dia. Quando chego ao limite dessa preguiça resistente e apática, a mão destrava-se, e instantes depois a paz regressa-me ao peito: está tudo em ordem, tudo como é esperado. O mundo voltou a ser redondo, a dançar sobre si mesmo, numa valsa tão antiga como o Verbo. E eu sou feliz outra vez.

terça-feira, 20 de outubro de 2009

Convite



A casa, a chuva, a escrita

Quando a chuva me segura dentro de casa, agarrando-me o corpo e a vontade, fico partida em dois.
Metade de mim sente a urgência de cuidar do ninho; tirar os vincos aos trapos; recuperar a dignidade ao chão espezinhado e ao quarto desfigurado; compor os inúmeros objectos que nunca param quietos e que insistem em inventar novos lugares que não lhes ficam bem no corpo.
A outra metade atira-se à escrita, e é assim que dou por mim a repartir as horas entre uma coisa e outra. Agora que o ninho suspira, satisfeito e renovado, despacho a fome, de consciência limpa, e disponho-me a dedicar o resto do dia a uma longa narrativa que urge contar. À minha direita, atrás do cortinado florido, cor de abóbora, deslizam gotas de chuva pela vidraça e a luz parda e intermitente do céu, inchado de água, parece brincar às escondidas. Escondo-me eu também nas palavras, que escorrem em aguaceiro, numa estranha sintonia com este dia choroso de Outubro.

domingo, 18 de outubro de 2009

Seminário com José Fanha

Tema:
Promoção e Mediação da Leitura

A realizar-se na Biblioteca Municipal de Mafra, dias 4,11,18 e 25 de Novembro (quartas-feiras) das 19.00 às 21.00.
Destina-se ao público em geral e a mediadores de leitura.
Nº participantes: 25
Inscrição gratuita na biblioteca ou pelo telefone 261 815 422
Concepção e realização: José Fanha

sábado, 17 de outubro de 2009

Poesia, Vinho e Alfarroba

Deixámos as malas no hotel e almoçámos numa esplanada com vista para o castelo de Silves. Chegámos à biblioteca à hora marcada, mas o técnico fazia ainda o som da banda que iria actuar a seguir. Eu fui surripiada para uma reunião informal, e sentei-me com a Rita em cadeiras de duende, para falar sobre as minhas propostas de cursos e oficinas de Escrita Criativa. Estava tudo atrasado, mas ninguém parecia importar-se. Era sábado, o filho da Rita andava por ali, a correr, a brincar, como se a biblioteca fosse uma segunda casa.
Quando regressei ao átrio, o público já se instalara, ignorando o acordeonista/produtor musical/coordenador de cultura, que dizia insistentemente "um-dois, som, som, um-dois-três!". Por fim, tudo ficou pronto. A Rita, com quem tive a reunião, também participou na festa, dizendo poemas e puxando sei lá quantos mais cordelinhos invisíveis. A banda tocou o "Sr.Vinho" da Amália e seguiu com o pulsar fresco e animado de quem entrega a alma ao que faz. Houve prova de tintos e rosés e, quando espreitávamos a biblioteca onde um grupo irreverente de adolescentes fazia mais ruído do que é permitido ali, uma senhora veio oferecer-nos um chá e uma fatia de bolo de canela.
A noite teminou da melhor forma, no restaurante "ALFARROBA": "Cozinha Mediterrânea, Tradicional e Vegetariana". O Paulo, exausto, não descurou o seu papel de anfitrião, inventando ainda forças para acompanhar o ritmo da conversa e planear visitas futuras. Na casa de banho, somos surpreendidos por uma citação de Marco Aurélio, que, no caso de falharmos, nos aconselha a não desanimar. Não pude deixar de rir. Augusto, o proprietário do restaurante, foi uma excelente companhia durante todo o jantar, falando-nos da cozinha de autor, dos seus tempos em Moçambique e de projectos ousados e inovadores. Enquanto, de olhos brilhantes, nos falava com o orgulho de quem acertou na profissão, ia-nos mimoseando com acepipes inesperados, que pareciam saídos das mãos dos anjos.
Aqui fica a sugestão, se forem a Silves:
ALFARROBA - Rua Cândido dos Reis, 107-B Loja 5
Tel - 282 449 247

sexta-feira, 16 de outubro de 2009

Mundos mudos

O meu computador emudeceu. E eu com ele. Ficou sem boca (isto é, sem colunas) para se fazer ouvir e eu, solidária, fiquei sem nada para dizer. Mudos, os dois. Mudos ambos os mundos.

quinta-feira, 15 de outubro de 2009

Parabéns, Agustina!


A senhora Agustina Bessa-Luís completa hoje 87 anos. Em jeito de celebração, vou passar a tarde a estudar a sua obra, num curso breve de literatura que lhe é hoje dedicado.

"A grandeza dum espírito está na pluralidade e plenitude da sua sensibilidade. Todo o vasto espírito é sempre um tanto santo e outro tanto demoníaco. Todo o artista exagera ou dilui, aviva ou simplifica!"
(AGUSTINA BESSA-LUÍS, em entrevista)

FOTO: Agustina Bessa-Luís, fotografada por Paulo Ricca
Fonte: Pública, 179 (31.Outubro.1999)


quarta-feira, 14 de outubro de 2009

terça-feira, 13 de outubro de 2009

Versos

O coordenador chegou agitado à sala da biblioteca, desgrenhado, com um atraso oficial. Os alunos iam chegando, preenchendo o número reduzido de cadeiras, a espicaçar a intimidade. Ia falar-se de poesia. As senhoras cumprimentaram-se, cúmplices, com o orgulho íntimo de quem troca as novelas e as séries de televisão pelos versos. Pouco depois, Mário de Sá-Carneiro era o ar que respirávamos, aflitos por tanta aflição. Como era possível sofrer assim, desperdiçar a vida inteira, dar-se ao luxo de tanta inquietação?

– O problema dele era não trabalhar! – Diz uma anciã – que idade é que ele tinha, 23…? Eu com 26 já trabalhava há anos e já era casada!

A sala riu, aliviada. Um banho de realidade prosaica, desarmante.
Fugimos da escuridão e da cinza para os campos verdes e as rosas nas mãos de Eugénio de Andrade. O Fernando falava num tom explicativo, como quem põe as realidades da vida no lugar certo, desfazendo-se da teimosia dos equívocos. Por entre o riso e a interrogação, as analogias com a vida mundana davam cor ao invisível, e luz à cauda dos versos que não conseguíamos decifrar, transformando-os em estrelas cadentes que nos pousavam nas mãos.
Saímos para a poesia recatada dos nossos dias, mas nos olhos andava o Domingo de Eugénio, a dizer ao mundo que o encontro fora demasiado breve.
Por fim, entendi que o Fernando não chegara agitado, era assim sempre, apaixonado, multiplicado, por se entregar a pequenas coisas por um grande amor. E eu senti-me um pouco menos pequena, engordada pelo sabor daqueles versos que depositaram dentro de mim.

segunda-feira, 12 de outubro de 2009

Nunca é tarde

Nunca é tarde para investirmos em nós próprios, mesmo que seja em perseguição de um sonho. Quem sabe se, o que começou por ser uma fantasia longínqua, não se irá tornar numa meta e, por fim, numa taça? Quantas vidas teremos nós de viver, para aprender a simplicidade das coisas? Deixemos de adiar as nossas vontades e de cultivar os suspiros profundos de resignação. Ergamos as taças que temos a felicidade de já possuir, e bebamos à saúde dos nossos sonhos. Obrigada, Rosarinho. És um anjo.

domingo, 11 de outubro de 2009

Poente

De regresso a casa, ao anoitecer, tive dificuldade em manter os olhos na estrada. O poente explodia cheio de cores, inundando o céu em tons de rosa, lilás, violeta, vermelho e laranja. Anoitecia à medida que as rodas do automóvel percorriam o alcatrão. Os tons purpúreos foram-se desvanecendo, dando lugar a um fogo tão poderoso, que as silhuetas das árvores, recortadas em contra-luz, pareciam sombras carbonizadas por um sol faminto.

sábado, 10 de outubro de 2009

Doces acasos


Hoje encontrei um casal que não via há muitos anos. O sítio estava longe de ter encanto, pois cruzámos os carrinhos de compras num corredor do Continente. Porém, os olhos brilharam. Trocámos contactos, combinámos um encontro para breve e despedimo-nos. Já dentro do carro, com as minhas compras, apercebi-me de que sorria ainda. Esquecera-me de deixar de sorrir. Conduzi de forma quase mecânica pela estrada arborizada, a recordar as duas semanas de férias passadas com o tio Henrique e a tia Maria Helena, que um dia convidaram a mais nova de cinco irmãos para ir com eles para o Algarve, por eu ser assim, dengosa, sem sair do colo deles. Foi a primeira vez que passei a fronteira e lembro-me ainda da conversa do meu tio com o fulano da alfândega, que não nos queria deixar passar, por eu não ter B.I. comigo. Foi uma criança deslumbrada que entrou no El Corte Inglés. Estava em Espanha! Tinha 12 anos. Foi junto deles que recebi o meu primeiro telegrama, outro privilégio principesco: Verocas, muitos parabéns! Passou de ano!, um beijinho dos pais. O alívio foi enorme, pois estava convencida de que iria reprovar. Lembro-me de que a minha tia foi escolher um anel e uma pulseira douradas, com florinhas azul-turquesa, que me fizeram sentir uma senhora. Olhava para a mão magra e para o meu pulso infantil e pensava: "recebi de presente, por ter passado de ano! Estou tão bonita!". Desde então, das raríssimas vezes em que o acaso nos reune, surge este carinho enorme. De 10 em 10 anos, os sentimentos adormecidos despertam, pois as emoções e as memórias - que libertam uma luz quente e saudosista - não querem saber das lâmpadas fluorescentes e frias do corredor de um supermercado.
Deixo aqui beijos e abraços melosos aos meus pais, ao tio Henrique e à tia Maria Helena.
(Foto: eu junto ao Tejo, com 10 anos, 1979)

sexta-feira, 9 de outubro de 2009

abraços precisam-se

Receberam-nos com dois abraços carinhosos e puseram-me um copo de Grandjó nas mãos. Ele terminava de preparar o jantar, ela entretinha-nos, mostrando a casa, conversando, perguntando-me acerca da escrita, fazendo-me sentir importante. Estivemos juntos como velhos amigos e foi como velhos amigos que nos despedimos, com mais abraços, a altas horas da noite, depois da sinceridade das conversas, do riso e do acender das opiniões. O jantar estava óptimo e o remate do crepe de chocolate com o tinto alentejano foi um consolo para a alma. Ficou a vontade de vos receber em nossa casa, urgentemente.
É bom estar com os amigos.
Obrigada, Lia e Nuno. Até (muito) breve.

quinta-feira, 8 de outubro de 2009

Irving Penn


Picasso, por Irving Penn
Irving Penn morreu ontem, com 92 anos. Perde-se um dos Mestres da fotografia Fine Art.

Simone de Beauvoir

"Photographing a cake can be art" —Irving Penn

quarta-feira, 7 de outubro de 2009

terça-feira, 6 de outubro de 2009

Workshop com Nanã Sousa Dias

Aos amantes de fotografia analógica a P/B:
No próximo fim de semana, 10 e 11 de Outubro, Nanã Sousa Dias dará um Workshop de Iniciação ao Laboratório Analógico de Preto e Branco, perto da Ericeira. Neste momento, ainda existem 2 vagas. Mais informações através do email : nsd.workshops@gmail.com

Aproveitem!
Para ver a galeria deste fotógrafo, clique aqui:

segunda-feira, 5 de outubro de 2009

Anúncio Bridgestone

Para sorrirem, neste feriado. Obrigado à Rita G., pelo video, e parabéns ao Zé, que completa hoje 65 primaveras! Um Dia Feliz!


domingo, 4 de outubro de 2009

Segurar o vento

Tenho uma proposta para ti: vamos segurar o vento. Vamos agarrá-lo com uma corda bem forte e encerrá-lo num barracão escuro, até que ele morra sufocado, engasgado pelo próprio ar. Assim não haverá poeira. Vamos rir-nos dele, vingados e mais felizes, de mãos dadas, enquanto nos afastamos juntos. Para onde? Por uma estrada que iremos construir, com vagar, feita de um qualquer material macio e resistente, que nos faça flutuar, sem peso, sobre as águas que deixámos para trás.

sábado, 3 de outubro de 2009

Poeira

Hoje dediquei-me à Escrita Criativa e trabalhei temas mais negros como a Morte, o Amor, a Raiva, etc. De um deles, saíu isto:
Não há como recuar nas palavras que foram ditas. Não há como continuar. Chegámos ao fim de uma estrada poeirenta e pedregosa, que nos deixou as gargantas secas, os olhos lacrimejantes, os pés doridos. À frente, a estrada prossegue, imutável no seu desconforto. Ignorámos clareiras, recantos e lagos, permitindo que os nossos corpos caíssem, inevitavelmente, sobre esse velho desvio poeirento, que nos sufoca. Para trás ficaram as ondas que soubemos compor e que, contra todas as marés, insistiam em rebentar-nos no ventre, no rosto, na vontade de sermos um. Esses murmúrios de amantes há muito se calaram, tornando-nos surdos os ouvidos, num lamentável silêncio de afectos. E a nossa beira-mar soa cada vez mais longínqua, numa memória em surdina, que se evapora e se converte em miseráveis gotas de água e sal, desvanecendo-se, por fim, até ser quase nada. Algumas aves cruzaram o nosso olhar, fazendo-nos sorrir, pois nem sempre caminhámos em estradas de pó; mas a poeira que se anunciava foi-se entranhando nas roupas, nas mãos, nas bocas, no coração, deixando-nos cegos às suas asas. Talvez a poeira assente, sim, mas o vento que não podemos ignorar irá erguê-la novamente e repetir os dias de pó que já conhecemos de cor.

sexta-feira, 2 de outubro de 2009

Jardins de Outono

Eis que o Outono se instala, cobrindo tudo com uma gaze fresca. Chega de mansinho, despindo os ramos das árvores e deixa-nos assim, melancólicos, por sabermos que, depois deste manto dourado, nos espera o mal-amado inverno. Os cabelos caem, solidários com as árvores, a pelagem dos cães modifica-se, a preparar-se para o frio. A pele regenera-se, despedindo-se do tom de bronze que o sol nos ofereceu, como se nos dissesse: “agora que terás de agasalhar o teu corpo, para quê essa cumplicidade com o sol?”. Respiro fundo e admito que assim é. O tempo renova-se, as chuvas anunciam-se, a paisagem transforma-se. Fecho a janela, viro-me para dentro e penso nas sementes que fui atirando à terra nas últimas estações. É preciso restaurar as palavras, limpá-las de todas as ervas daninhas, do lixo literário que o desamor e a preguiça foram acumulando. É tempo de preparar o futuro, que pode ser amanhã ou depois de amanhã. Conferir o legado, arrumar a casa da escrita, deixar a melhor versão, os melhores rebentos. Salvar o que tem de ser salvo. Pensar que, de hoje em diante, a responsabilidade é maior. Não que o seja, realmente, mas anima-me pensar que serei, um dia, um bom jardineiro. Alguém que se importe com as minhas palavras. Um só alguém que seja. Trabalhar. É urgente cultivar a terra, pois a pergunta paira sobre mim: se te fores, amanhã, o que queres deixar no teu jardim?

quinta-feira, 1 de outubro de 2009

Dilemas

Queria ir espreitar os meus futuros se tivesse ido por aqui ou por ali. Poder escolher entre os dois, entre muitos, como um bolo numa montra: quero este. Mas o futuro é só um de cada vez e quando nos chega à mão, já vem fora do prazo.